domingo, 3 de julho de 2011

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"Assim todas as coisas inspiram e expiram. Todos são providos de canais de carne, pobres de sangue, sobre toda a superfície do corpo; e em suas extremidades, a superfície extrema da pele é perfurada por muitos poros, de modo a reterem o sangue, permitindo contudo a livre passagem do ar. E quando o fino sangue se afasta (dos poros), penetra neles impetuosamente o ar, para deles ser expirado novamente quando o sangue retorna; assim como quando uma menina brinca com uma clepsidra de brilhante cobre: enquanto conservar sua graciosa mão sobre a boca (da clepsidra) e mergulhá-la no macio corpo da água prateada, não entrará água no vasilhame, pois o peso do ar comprimido contra os estreitos orifícios o impedirá, até que (a moça) liberte a corrente de ar comprimida; então, deixa o ar um espaço vazio, que é ocupado em igual medida pela água. Assim também, quando a água encher por completo o corpo (da vasilha) de cobre, enquanto o pescoço e a boca permanecem fechados pela pele humana, - o ar exterior, que procura entrar, reprime a água, pela pressão em sua superfície, junto à entrada da boca, que deixa ouvir um som borbulhante, até que (a moça) retire a sua mão; então, ao contrário do que acontecia antes, o ar se precipita ao interior, , e um correspondente de água escapa para lhe fazer lugar. da mesma forma o tênue sangue, que percorre as veias, refluindo para o interior, precipita abundantemente a corrente de ar; mas quando, ao contrário, o sangue retorna, o ar é expirado em correspondente quantidade."

Empédocles, Fragmento 100, do poema Sobre a Natureza (Peri Physeus)
in Aristóteles, de respiratione , 7, 473 b 9
Versão de Gerd A. Bornheim, Os Filósofos Pré-Socráticos, São Paulo, Editora Cultrix, 1977


"So do all things inhale and exhale: there are bloodless channels in the flesh of them all, stretched over their bodies' surface, and at the mouths of these channels the outermost surface of skin is pierced right through with many pore, so that the blood is kept in but an easy path is cut for the air to pass through. Then, when the fluid blood rushes away thence, the bubbling air rushes in with violent surge; and when the blood leaps up, the air is breathed out again, just as when a girl plays with a klepsydra of gleaming brass. When she puts the mouth of the pipe against her shapely hand and dips it into the fluid mass of shining water, no liquid enters the vessel, but the bulk of the air within, pressing upon the frequent perforations, holds it back until she uncovers the dense stream; but then, as the air yelds, an equal bulk of waters enters. In just the same way, when water occupies the dephts of the brazen vessel and the passage of its mouth is blocked by human hand, the air outside, striving inwards, holds the water back, holding its surface firm at the gates of the ill-sounding neck until she lets go with her hand; and then again ( the reverse of what happened before), as the breath rushes in, an equal bulk of water runs out before it. And in just the same way, when the fluid blood surging through the limbs rushes backwards and inwards, straightway a stream of air comoes in with swift surge; but when the blood leaps up again, an equal quantity of air is again breathed back."

Empedocles, fr. 100, On Nature poem
Aristotle de respiratione 7, 473 b9
versão em inglês
in G.S. Kirk, & J.E. Raven, The Presocratic Philosophers, London, Cambridge University Press, 1975, p.341


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segunda-feira, 18 de abril de 2011

" Vou contar uma dupla história: de uma vez cresceu para ser um só a partir de muitos, de outra, dividiu-se de novo para ser muitos a partir de um. Há um duplo nascimento das coisas mortais e um duplo deixar de existir. Um é gerado e depois destruído, pela junção de todas as coisas, o outro cresce e é espalhado à medida que as coisas de novo se dividem. E estas coisas nunca cessam o seu mover contínuo, ora convergindo num todo, graças ao Amor, ora cada uma separada das outras pela Discórdia. (Assim, na medida em que aprenderam a fazer-se num a partir de muitos) e de novo, quando esse um está separado, são uma vez mais muitos, assim nascem e não têm vida duradoura; mas, na medida em que nunca cessam a intermutação contínua de lugares, nessa medida eles são sempre imutáveis no ciclo."

Empédocles, Fr.17, 1-13, in Simplício, Phys., 158,1*



"A double tale will I tell: at one time it grew to be one only from many, at another it divided again to be many from one. There is a double coming into being of mortal things and a double passing away. One is brought about, and again destroyed, by the coming together of all things, the other grow up and is scattered as things are again divided. And these things never cease from continual shifting, at one time all coming together, through Love, into one, at another each born apart from the others through Strife. (So, in so far as they have learnt to grow into one from many,) and again, when the one is sundered, are once more many, thus far they come into come into being and they have no lasting life; but in so far as they never cease from continual interchange of places, thus far are they ever changeless in the cycle."

Fr. 17, 1-13, Simplicius Phys. 158, 1

" Mas anda, atenta nas minhas palavras; pois aprender aumenta a sageza. Como disse anteriormente, quando declarei os limites das minhas palavras, vou contar uma dupla história: de uma vez, cresceu para ser um só a partir de muitos, doutra, dividiu-se outra vez para ser muitos a partir de um, o fogo e a água e a terra e a vasta altura do ar, e também a discórdia temível separada destes, em toda a parte igualmente equilibrada, e o amor no meio deles, igual em comprimento e largura. Para ele olha com o espírito e não fiques com os olhos ofuscados; pois ele é reconhecido como inato nos membros imortais; por ele são eles capazes de pensamentos bons e de praticar obras de concórdia, dando-lhe o nome de Alegria e a Afrodite. Nenhum homem mortal o conhece, quando ele rodopia no meio dos outros; mas presta atenção à ordenação do meu discurso que não engana. Pois todos estes são iguais e de idade igual, mas cada um tem uma prerrogativa diferente e o seu próprio carácter, e prevalece cada um, por sua vez, à medida que o tempo gira. E além destes, nada mais se gera nem cessa existir; porque se estivessem a ser continuamente destruídos, já não existiriam; e o que poderia aumentar este todo e de onde poderia vir? E como poderiam estas coisas perecer também, visto que nada está vazio delas? Não, há somente estas coisas, e correndo umas pelas outras, elas tornam-se umas vezes isto, outras aquilo, e permanecem, contudo, sempre como são."

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Empédocles, Fr.17, v.14, in Simplício, Phys., 158, 13 (continuação de Fr.17, 1-13)

Trad.: Op.cit.

*Trad.: Kirk e Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos, trad. C.A.L. Fonseca, B.R. Barbosa, M.A.Pegado, Gulbenkian, Lisboa.



"But come, hearken to my words; for learning increaseth wisdom. As I said before when I declared the limits of my words, a double tale will I tell: at one time is grew to be one only from many, at another it divided again to be many from one, fire and water and earth and the vast height of air, dread Strife too, apart from these, everywhere equally balanced, and Love in their midst, equal in lenght and breadth. On her to thou gaze with the mind, and sit not with dazed eyes; for she is recognized as inborn in mortal limbs; by her they think kind thoughts and do the works of concord, calling her Joy by name and Aphrodite. Her does no mortal man know as she whirls around amid the others; but do thou pay heed to the undeceitful ordering of my discourse. For all these are equal, and of like age, but each has a different prerogatif and its own character, and in turn they prevail as time comes round. And besides these nothing else comes into being nor ceases to be; for if they were continually being destroyed, they would no longer be; and what could increase this whole, and whence could it come? And how could these things perish too, since nothing is empty of them? Nay, there are these things alone, and running through one another they become now this and now that and yet remain ever as they are."


Fr.17, 1. 14, Simplicius Phys. 158,13 (continuing Fr. 1. 17, 1-13)

Kirk, G.S., & Raven, J.E., The Presocratic Philosophers, University Press, Cambridge, 1975.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

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"O vocábulo chinês que significa a palavra, o sinal sonoro ou escrito, o nome, é o mesmo que serve para designar a própria vida ou destino: ming [falta aqui representar o pictograma; desconhecemos os passos necessários]. A vida, assinalada pelo seu destino, marcada no seu começo e no seu fim, numa palavra, com os seus signos próprios, é uma cifra, uma letra, ou um sinal, tal como, por outro lado, os sinais têm também a sua vida. Quererá isto dizer a equação segundo a qual não haverá vida sem sinal, ou sinal sem vida? O sentido arquetípico desta designação parece adensar ainda mais o sentido organicista e funcional de uma linguagem em que nada se pode definir de modo absoluto e estático, porque absoluta só é a relação e o dinamismo global. O dizer - yen (1), como um 'mostrar', a acção da boca e o gesto ostensivo, refere o poder da própria palavra no sentido da invocação eficaz, ou seja, do estatuto mágico segundo o qual saber o nome é ter poder sobre a coisa, ou melhor, realizá-la.



Independentemente da arte de tcheng ming, isto é, de 'correcta designação', assimilável à recta ratio do moderno pensamento europeu, o que importa sublinhar é o lugar vital, ritual, ou a ordem dinâmica em que se situa a linguagem como intermédio entre a abstracção do ser material estático, e a abstracção da imóvel ordem da idealidade.



Aquém ou além do excessivo, ming é a medida do que pode e deve ser dito, tal como é ainda possível reconstituir nos radicais do seu símbolo gráfico. Ming é um carácter formado pela justaposição dos sinais da boca e da tarde, isto é, do chamamento invocado por essa abertura da boca, e do crepúsculo que separa o dia da noite, representado pelo grafismo da Lua que se começa a ver emergindo no horizonte. Na penumbra do momento, assim assinalado, é necessário o nome como o chamamento que identifica alguém, ou seja, é necessário dizer-se o nome para ser conhecido, não havendo já luz para se ver, sem nome, nem ainda treva que não permita reconhecer a quem o nome pertence ou é dado. Reputa-se de grande importância este carácter médio, esta condição 'penumbrática' do nome dos signos da língua chinesa, pois, recuperando ainda a tradição arqueológica acerca da origem destes signos, encontra-se no nó (fu), o momento médio das duas pontas da corda, sendo o signo, a um tempo, coalescente e diferencial. Mas esta condição do significar torna-se ainda mais óbvia se se recordar a legendária criação dos kua ou trigramas Fo-Hi, depois deste sábio e santo homem ter, segundo a tradição, examinado o Céu e a Terra, e procurado, enfim, a natureza de coisas médias.




O âmbito expressivo do signo no seu grafismo parece implicar o recorte espacial, a delimitação de uma área onde ainda se veja claro. É curiosa a comparação, sobre este aspecto, do grafismo chinês, com alguns ideogramas da civilização Maya, pois, naqueles que implicam o sentido da «palavra» encontra-se o sinal gráfico de uma cercadura, ou de uma inclusão, denotando o seu significado como signo «fechado». A palavra ou o falar em maya (t'an) anda, portanto, associada à «boca», mas também à «cerca» ou «caixa» que delimita o que se diz. T'an representa deste modo um dito que se vela, mesmo quando se re-vela: ou seja, 'a palavra é sempre sagrada'»



(1) Desconhecemos as ferramentas para incluir o pictograma neste post.




Silva, C. (Carlos Henrique do Carmo Silva) (1984), "Dos Signos Primitivos: preliminares etiológicos para uma reflexão sobre a essência da linguagem" In: Análise, vol.1, nº2, 1984.


Breve comentário:
Interessantes passagens de um profundo artigo deste autor.
No entanto não me dispenso de fazer uma breve observação relativamente ao último parágrafo: Mas por que é que a 'cerca' ou a 'caixa' 'delimitam' no sentido de fechamento ("denotando o seu significado como signo fechado")? Porque não havemos de dar um sentido de abertura dessas mesmas 'cerca' ou 'caixa'? Tal como acontece com a metáfora do 'poro' ou da 'porta', p.ex., a 'cerca' e a 'caixa' também indicam o sentido de abertura a partir precisamente da sua de-limitação. É estranho que o autor não mencione este aspecto. Dá a impressão que não deu por ele...


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Depois também é interessante ver as vezes em que o termo 'tradição' é utilizado.


Aqui a questão da intermediariedade remete visivelmente para uma tradição de pensamento do plano da 'inteligibilidade', quer dizer, de uma invisibilidade que vê, ou de uma visibilidade do invisível de vertente platónica. Por isso, intermediariedade associada à anterioridade. E interioridade com tradição num pensamento do intus-legere (latim: do ver em, ver dentro; quer dizer, de um ver que se pretende ver fora e dentro - pois atravessa, no seu ver, através das aparências - mas que não deixa no entanto de se estabelecer num plano neutral, pretensamente indiferente - mas afim a uma hierarquia do real e das coisas culminando na idealidade platónica. Enfim, a inteligibilidade de um plano intermédio que acaba por recair no plano médio da neutralidade e de uma indiferença teorético-contemplativa, que se pretende do fora e do dentro. Mas nessa intermediariedade aspira a um «dentro» subjectivo radicado no sagrado, no teológico e no onto-teológico.

Daí que noutros textos o autor seja tão adepto do termo 'indiferença' e não antes do de 'diferença'. Basta ler a expressão 'coisas médias'. No seu texto sente-se a renúncia a uma inscrição da diferença que se reafirme em relação à diferencialidade neutral das «coisas médias». o 'diferencial' permanece na intermediariedade que acima analisámos.
Por outro lado, as «coisas médias» remetem neste autor claramente para a «mística», para o esotérico e para o hermetismo.


Assim, as «coisas médias» servirão para invocar a interioridade (aliada à anterioridade). Enfim, como meio para outro meio da ordem de um 'dentro'.


Talvez a compreensão da linguagem seja sempre, por mais que estejamos atentos, atravessada por um vazio de silêncio, que por vezes nos escapa, com seu modo, lugar e tempo em que se manifesta. Ao qual é preciso responder com o silêncio sem linguagem, com o desapego desta ainda através dela porque ecoando o outro silêncio, o outro vazio. Isto talvez se deva à nossa insuficiente compreensão da espiritualidade do Oriente. Porquê? Porque toda esta terminologia tende muitas vezes a acabar por se inscrever num registo espiritual ocidental.


Este comentário encontra-se em elaboração.

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sexta-feira, 1 de abril de 2011

De qualquer maneira deu coragem aos meus guerreiros




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Advertência: São feitos alguns acrescentos na narrativa para compensar a ausência de imagens, estas que são tão cruciais na sua relação ao texto.

Se a beberagem de Astérix restitui a coragem aos Bretões, uma boa notícia levanta o moral dos romanos.

"Avé, general! Caius Boi de Pisus manda dizer que a poção mágica e os gauleses que a transportavam estão no fundo do rio!"

General: Por Júpiter! é a altura de atacar!

Tocam as trombetas: tarariiiiii... tarariiiiii.....

Mais uma vez, podemos gozar o espectáculo da legião romana a fazer manobras...

"Centuriões, decuriões, legionários! Não há perigo os nossos adversários perderam simultaneamente os seus aliados gauleses e a poção!

... Em quadrado

"vencer sem perigo evita consequências...

...Em triângulo...

"Ao ataque!!!"

Astérix: Legionários! Dêem atenção. Aqui estamos e temos a poção mágica. Ainda se podem render!

... Em círculo (todos encolhidos para o centro do círculo)!

Um legionário: Conheço aquele de quando estava em aquarium, é Astérix!

Outro legionário: e se é Astérix, o seu camarada Obélix não está longe!

E outro legionário: Qual Obélix? O doido?!!?...

E outro ainda: E deram poção mágica aos Bretões!

"Acabem com isso!! Ao ataque!!!"

Obélix, da paliçada: Claro! Ataquem! Obedeçam ao vosso chefe!... Por Toutatis! Já nem há disciplina! Ao ataque se faz favor!

O chefe bretão: Vamos a eles, Astérix?

Astérix: vamos a eles!

Dois dos legionários perante a investida:

Fazem uma saída!

Entram nas nossas linhas!

Astérix: Obélix! isto não é teu! deixa passar os outros!

Obélix: Ah, isso não! Os turistas primeiro!

O chefe bretão: Hurrá, e todas as coisas mais!

Última fase da esplêndida manobra Romana: a retirada, em desordem.

Dois legionários em aflição no meio do tumulto:

Um: "Salve-se quem puder!"

Outro: "Não sei se posso mas vou experimentar!

Obélix e companhia irrompem no meio dos romanos: Tchraaaaac!!

O chefe bretão: Fogem!

Outro bretão: Vitória!

Astérix para Obélix que segura debaixo do braço um legionário estrebuchando e esperneando: Larga-o! Que lhe queres fazer mais?

Obélix: Estava a pensar acabá-lo mais trade, tranquilamente!...

Chefe bretão: Obrigado, obrigado Astérix! Graças a ti vencemos os romanos. Vou persegui-los e libertar toda Bretanha!

Astérix: Sabe, o que beberam não era a poção mágica...

Obélix, entretanto, assobiando, dá uma leve tapa na tola do legionário o qual sai disparado como uma rolha de garrafa, com uma expressão característica daquelas burlescas situações no canto do quadradinho.

Chefe bretão: Desconfiava... de qualquer maneira deu coragem aos meus guerreiros. Quando chegares à tua aldeia, manda-me mais ervas. farei dito a nacional bebida [o chá]!


Astérix e os Bretões, texto de Goscinny, desenhos de Uderzo
Uma aventura de Astérix o gaulês

terça-feira, 22 de março de 2011

Um homem tão rápido como eu não podia ser senão outro eu




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(...)

Lucky Luke deparando-se surpreendido com o seu reflexo num espelho na penumbra da casa de um rancho assombrado.

Lucky Luke: “Há aqui gente!”. Pam! (dispara no espelho)

Dziing (o espelho estilhaça-se).

Lucky Luke: “Um espelho”.

Lucky Luke volta-se para o leitor: “Um homem tão rápido como eu não podia ser senão outro eu.”


(...)


In: O rancho maldito, por Facha – J. Léturgie – Claude Guy Louïs.


Lucky Luke: “O homem que atira mais rápido que a sua sombra”.


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domingo, 20 de março de 2011

É tão vesgo que é incapaz de entrar por uma janela : como vê duas, entra na do meio (…)




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«(…)

BLAM. Au!...?!

Os dois rebeldes: O que é? Não sei!

Legenda do narrador: Alguns segundos mais tarde…

Pombo correio (legenda em surdina): Tal… Talvez seja formidável, este instinto, mas continua a ser impreciso!

Um dos rebeldes: É apenas um idiota de um pombo com um galo na cabeça!

O outro rebelde: Bom, já compreendi, é o pombo do Prabang: deve trazer uma mensagem…

Trá-lo para aqui, depressa!

O primeiro rebelde: O.K. !

O segundo rebelde: É um pombo atrozmente estrábico… É tão vesgo que é incapaz de entrar por uma janela: como vê duas, entra na do meio (…)

O pombo em surdina: Só havia uma janela?!


(…)»


BD. Fournier, As Aventuras de Spirou e Fantásio: O Inspector da Mafia, Lisboa, Trad. Maria Isabel Roseiro, Edit. Publica, 1983, pgs.36 e 37.



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sábado, 19 de março de 2011

Deixe a cadeira sossegada.. se me atirar com ela, ela ricocheteará no mesmo obstáculo e, além disso, poderia aleijá-lo, o que muito me desolaria!






[…]

Com um sorriso sardónico nos lábios, o doutor Septimus está plantado à sua frente…

D.Septimus.: Então, meu caro… fez-lhe bem, esse sono reparador? A propósito: sabia que ressona?...

Mortimer : Hem? O que é que?...

D.Septimus: Agora a sério, meu caro professor. Foi muito amável em ter vindo entregar-se nas minhas mãos, quando eu me preparava para conseguir o mesmo com a ajuda de sábias maquinações…

Bruscamente, Mortimer, furibundo, corre para Septimus, mas…

Mortimer: Canalha !!!...

D.S.: !

Ainda não tinha [Mortimer] dado três passos quando choca contra um obstáculo invisível.

Mortimer: Ooh

D.Septimus: Ah! Ah! Ah! O que acha da minha cortina electromagnética?... Uma pequena invenção minha. É muito prática, como vê, para acalmar pessoas nervosas!...

Mortimer: ?

Mortimer põe-se de pé e, ameaçador, pega numa cadeira. Mas Septimus aconselha-o…

D.Septimus: Deixe a cadeira sossegada.. se me atirar com ela, ela ricocheteará no mesmo ostáculo e, além disso, poderia aleijá-lo, o que muito me desolaria!

[…]

Edgar P. Jacobs, A Marca Amarela
As aventuras de Blake and Mortimer

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quinta-feira, 17 de março de 2011

Where can I find a man who had forgotten words? He is the one I would like to talk to.



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tinta da china em papel
luís tavares
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“The purpose of a fish trap is to catch fish,

And when the fish are caught, the trap is forgotten.

The purpose of a rabbit snare is to catch rabbits.

When the rabbits are caught, the snare is forgotten.

The purpose of words is to convey ideas.

When the ideas are grasped, the words are forgotten.

Where can I find a man who had forgotten words?

He is the one I would like to talk to.”

Chuang-Tzu


David Schiller, The Little Zen Companion, Workman Publishing, New York, 1994, p.58.

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Vladimir: O tempo parou. Pozzo: (Encostando o relógio ao ouvido) O senhor não acredite nisso, não acredite nisso. (Volta a pôr o relógio no bolso) Tu




“Vladimir: Será que nunca mais é noite?
Olham os três para o céu.
Pozzo: Só se vão embora quando for noite?
Estragon: Quer dizer –
Pozzo: Mas é natural, é perfeitamente natural. Eu próprio, se estivesse na vossa situação, se tivesse um encontro marcado com um Godin… Godet… Godot… ou lá como é, eu próprio só desistia quando ficasse noite bem escura. (Olha para o banco.) Apetecia-me mesmo sentar, mas não sei bem como é que devo fazer.
Estragon: Posso ajudá-lo?
Pozzo: Se calhar se me pedisse.
Estragon: O quê?
Pozzo: Se me pedisse para eu me sentar.
Estragon: Isso ajudava?
Pozzo: Creio que sim.
Estragon: Então vamos lá. Sente-se, meu senhor, faça o obséquio.
Pozzo: Ai não, não, nem pensar! (Pausa. Aparte.) Peça outra vez.
Estragon: Vá lá, sente-se, eu insisto, ainda apanha uma pneumonia.
Pozzo: Acha mesmo?
Estragon: Tenho a certeza absoluta.
Pozzo: Tem toda a razão. (Senta-se) Cá estou eu outra vez! (Pausa) Muito obrigado, meu caro. (Consulta o relógio) Mas, se quero cumprir o meu horário, tenho mesmo de me ir embora.
Vladimir: O tempo parou.
Pozzo: (Encostando o relógio ao ouvido) O senhor não acredite nisso, não acredite nisso. (Volta a pôr o relógio no bolso) Tudo o que quiser, mas isso não.
Estragon: (para Pozzo) Ele hoje vê tudo negro.
Pozzo: Excepto o firmamento! (Ri satisfeito com a sua frase)
(…)

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Samuel Beckett, À Espera de Godot, Trad. J.M.V.Mendes, Lisboa, Cotovia, 2002, p.50.



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« (…) Minetti:

O mergulho de cabeça na obra de arte

minha senhora

de cabeça

Com o objecto do espírito

contra o lixo do espírito

com a obra de arte

contra a sociedade

contra a boçalidade

(Esgrimindo com o chapéu-de-chuva no ar, subitamente)

Persegui-los

(Cabisbaixo)

Enfiar o barrete do espírito

na cabeça da boçalidade

(Alto, indignado)

Com o barrete do espírito

estrangular a boçalidade

a sociedade

tudo

estrangulado com o barrete do espírito

Maquinar um grande espectáculo

enfiar o barrete do espírito na cabeça da boçalidade

(…) »

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Teatro. Thomas Bernhard, Minetti, trad. João Barrento, Lisboa, Ed. Cotovia, 1990, p.40.


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segunda-feira, 7 de março de 2011



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1.


“Vladimir: Será que nunca mais é noite?

Olham os três para o céu.

Pozzo: Só se vão embora quando for noite?

Estragon: Quer dizer –

Pozzo: Mas é natural, é perfeitamente natural. Eu próprio, se estivesse na vossa situação, se tivesse um encontro marcado com um Godin… Godet… Godot… ou lá como é, eu próprio só desistia quando ficasse noite bem escura. (Olha para o banco.) Apetecia-me mesmo sentar, mas não sei bem como é que devo fazer.

Estragon: Posso ajudá-lo?

Pozzo: Se calhar se me pedisse.

Estragon: O quê?

Pozzo: Se me pedisse para eu me sentar.

Estragon: Isso ajudava?

Pozzo: Creio que sim.

Estragon: Então vamos lá. Sente-se, meu senhor, faça o obséquio.

Pozzo: Ai não, não, nem pensar! (Pausa. Aparte.) Peça outra vez.

Estragon: Vá lá, sente-se, eu insisto, ainda apanha uma pneumonia.

Pozzo: Acha mesmo?

Estragon: Tenho a certeza absoluta.

Pozzo: Tem toda a razão. (Senta-se) Cá estou eu outra vez! (Pausa) Muito obrigado, meu caro. (Consulta o relógio) Mas, se quero cumprir o meu horário, tenho mesmo de me ir embora.

Vladimir: O tempo parou.

Pozzo: (Encostando o relógio ao ouvido) O senhor não acredite nisso, não acredite nisso. (Volta a pôr o relógio no bolso) Tudo o que quiser, mas isso não.

Estragon: (para Pozzo) Ele hoje vê tudo negro.

Pozzo: Excepto o firmamento! (Ri satisfeito com a sua frase)

(…)
Samuel Beckett, À Espera de Godot, Trad. J.M.V.Mendes, Lisboa, Cotovia, 2002, p.50.

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Estudo-versão-cromática-azul-avioletado a partir de 'bodegón' (natureza morta, 1946) de Picasso.

Acrílico sobre prancha de cartão entelado, 23x35+-, 2002.
By L.Tavares
Col. privada.

"Os flancos e o fundo - aquilo em que consiste a vasilha e pelo qual ela se mantém de pé - não são, propriamente falando, o que contém. Mas se o continente reside no vazio da vasilha, então o oleiro, que, sobre o seu torno enforma os flancos e o fundo, não fabrica, propriamente falando, a vasilha. Ele somente dá forma à argila. Que digo eu? Ele dá forma ao vazio. É para o vazio, é nele e a partir dele que enforma a argila para dela fazer uma coisa que tem forma. O oleiro alcança primeiro e alcança sempre o inalcançável do vazio, ele o produz como um continente e lhe dá a forma dum vaso."

"A coisa" in Martin Heidegger, Essais et conférences, trad. André Préau, Paris, Gallimard, p.199, 1995.

Tradução do trecho: Luís Tavares



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domingo, 6 de março de 2011




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“ Prof. Girassol: Bom! Como fazemos então para não nos esborracharmos contra a Lua?... Simplesmente obrigar nosso foguete a dar meia volta… para isso basta desligar o propulsor principal e pôr em acção um reator lateral… Uma vez o foguete virado, o jacto do nosso motor atómico será dirigido para a Lua, contendo a nossa descida, o que, se tudo correr bem, nos permitirá alunissar com suficiente lentidão… Compreende?...

Capitão Haddock: Sim, acho que seria uma repetição da partida, mas ao contrário…”

Versão brasileira (1970)

Outra versão:

Prof. Girassol:«Bom! Então que fazer para não nos irmos esmagar na lua? …Muito simplesmente voltar o foguetão, isto é, fazê-lo virar os pés para a cabeça… Para isso, basta primeiro, parar o propulsor principal e, depois, pôr em marcha o reactor lateral… Uma vez o foguetão virado, o jacto do motor atómico será dirigido para a Lua e travará a descida, o que nos permitirá, se tudo correr bem, alunar docemente… Está a perceber?...
Capitão Haddok: Em suma, se bem percebo, é a mesma coisa que para a partida, com a diferença de que é exactamente o contrário!»

In «As Aventuras de Tintim» de Hergé, Explorando a Lua (versão publicada pelo Jornal “Público”

sexta-feira, 4 de março de 2011





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«Cush: “ Estou à vossa espera desde ontem.”

“Ah… És tu, Cush… Tens razão, mas tivemos de fazer um longo desvio, para não encontrarmos as patrulhas turcas e os Benilahej.”

Cush: “Ugh! Não é verdade que está escrito: Justificares-te não te trará camelos de recompensa?... É inútil explicares as razões do teu atraso. Estás atrasado e chega.”

“Sim, mas no Surate 10 está escrito: o amigo não censurará o amigo. E agora chega de toda esta história (…)”»

In: “As Etiópicas”, p.8. Corto Maltese, Por Hugo Pratt.

(...)

Corto Maltese: «Pois foi…É verdade que o abandonei… Mas porque é que não o deveria ter feito?... Por amizade?... Por lealdade?... Mas o que estou para aqui a dizer…

Não tenho que me justificar perante ninguém… Ouvem-me? Escapei-me! Tive medo de morrer e escapei-me…
… E escapar-me-ei todas as vezes que quiser… Vão todos para o inferno!...

Uma pedra rola: «sock!»
Não sou um herói…

Sou como os outros… E tenho o direito de me enganar como toda a gente… Tranquilamente, sem ter de fazer um exame de consciência todas as vezes…»

Corto Maltese, Op.cit., p.17.

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quinta-feira, 3 de março de 2011

"Oh! il est Logicien!"


"(...)

Le Logicien, sortant de sa réserve.

Messieurs, excusez-moi d'intervenir. Là n'est pas la question. Permettez-moi de me présenter...

La Ménagère, en larmes.

C'est un Logicien!

Le patron

Oh! il est Logicien!

Le vieux monsieur, présentant le Logicien à Bérenger.

Mon ami, le Logicien!

Bérenger

Enchanté, Monsieur.

Le Logicien, continuant.

...Logicien professionnel: voici ma carte d'identité.

Il montre sa carte

Bérenger

Très honoré, Monsieur.

L'Épicier

Nous sommes très honorés.

Le patron

Voulez-vous nous dire alors, monsieurs le Logicien, si le rhinocéros africain est unicornu...

Le vieux monsieur

Ou bicornu...

L'épicière

Et si le rhinocéros asiatique est bicornu.

L'épicier

Ou bien bicornu.

Le logicien

Justement, là n'est pas la question. C'est ce que je me dois de préciser.

L'épicier

C'est pourtant ce qu'on aurait voulu savoir.

Le logicien

Laissez moi parler, Messieurs.

Le vieux monsieur

Laissons-le parler.

L'épicière, à l'Épicier, de la fenêtre

Laisse-le donc parler.

Le patron

On vous écoute, Monsieur.

Le logicien, à Bérenger.

C'est à vous, surtout, que je m'adresse. Aux autres personnes présentes aussi.

L'épicier

À nous aussi...

Le logicien

Voyez-vous, le débat portait tout d'abord sur un problème dont vous vous êtes malgré vous écarté. Vous vous demandiez, au départ, si le rhinocéros qui vient de passer est bien celui de tout à l'heure, ou si c'en est un autre. C'est à cela qu'il faut répondre.

Bérenger

De quelle façon?

Le logicien

Voici: vous pouvez avoir vu deux fois un même rhinocéros portant une seule corne...

Lépicier, répétant, comme pour mieux compreendre.

Deux fois le même rhinocéros.

Le patron, même jeu.

Portant une seule corne...

Le logicien, continuant.

...Comme vous pouvez avoir vu deux fois un même rhinocéros à deux cornes.

Le vieux monsieur, répétant.

Un seul rhinocéros à deux cornes, deux fois...

Le logicien

C'est cela. Vous pouvez encore avoir vu un premier rhinocéros à une corne, puis un autre, ayant également une seule corne.

L'épicière, de la fenêtre.

Ha,ha...

Le logicien

Et aussi um premier rhinocéros à deux cornes, puis un second rhinocéros à deux cornes.

(...)"

Eugène Ionesco, Rhinocéros, Paris, Folio, 2008


Na foto: Ionesco.

.
.

Et « Orient » en portugais : « Portugal » !



-
"(...)

L'élève

J'ai mal aux dents.

Le professeur

Je dis donc: dans certaines expressions, d'usage courant, certains mots diffèrent totalement d'une langue à l'autre, si bien que la langue employée est, en ce cas, sensiblement plus facile à identifier. Je vous donne un exemple : l'expression néo-espagnole célèbre à Madrid : « ma patrie est la Néo-Espagne », devient en italien : «ma patrie est...

L'élève

La Néo-Espagne.»

Le professeur

Non ! « Ma patrie est l'Italie. » Dites-moi alors, par simple déduction, comment dites-vous « Italie» en français?

L'élève

J'ai mal aux dents!

Le professeur

C'est pourtant bien simple : pour le mot «Italie», en français nous avons le mot «France» qui en est la traduction exacte. « Ma patrie est la France.» Et «France» en oriental: «Orient»! «Ma patrie est l'Orient.» Et «Orient» en portugais: «Portugal»! L'expression oriental: «ma patrie est l'Orient» se traduit donc de cette façon en portugais : « ma patrie est le Portugal»! Et ainsi de suite...

L'élève

Ça va! Ça va! J'ai mal ...

Le professeur

Aux dents! Dents! Dents!.. Je vais vous les arracher, moi! Encore un autre exemple. (...)"

Eugène Ionesco,
La leçon, Paris, Folio, 2008, p.73

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

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Estudo das botas de camponesa de Van Gogh
Acrílico sobre tela sintética colada em tábua, 25x35cm +-.
Pintura de Luís Tavares
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Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a humidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurec e a sua inexplicável recusa na desolada improdutividade do campo no Inverno. Por este apetrecho passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte. Este apetrecho pertence à terra e está abrigado no mundo da camponesa. É partir desta abrigada pertença que o próprio produto surge para o seu repousar-em-si-mesmo.

Martim Heidegger, A Origem da Obra de Arte, trad. M. Conceição Costa, Ed. 70, 1992, p.25.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Então ele comeu até ficar cheio e bebeu vinho forte, sete taças. Ficou alegre, o seu coração exultava e o seu rosto brilhava. Alisou o cabelo emaranhado do seu corpo e untou-se com óleo. Enkidu tornara-se um homem, ei-lo como um noivo. Pegou em armas para caçar o leão, para que os pastores pudessem descansar de noite. Apanhou lobos e leões, e os homens dos rebanhos descansaram em paz, pois Enkidu, o homem forte que não tinha rival, era o seu vigilante.

Estava contente vivendo com os pastores até que um dia, erguendo os olhos, viu um homem que se aproximava. Disse para a cortesã:

«Mulher, trás cá aquele homem. Porque veio ele? Quero conhecer o seu nome.»

Ela foi e chamou o homem, dizendo:

«Senhor, aonde vais nessa fatigante viagem?»

O homem respondeu, dizendo a Enkidu:

« Gilgamesh entrou na casa da boda e fechou a porta ao povo. Ele fez estranhas coisas em Uruk, a cidade das grandes ruas. Ao rufar o tambor o trabalho começa para os homens, começa o trabalho para as mulheres. Gilgamesh, o rei, vai celebrar casamento com a Rainha do Amor, e ainda exige ser o primeiro com a noiva, primeiro o rei e o marido a seguir, pois isso foi ordenado pelos deuse desde o seu nascimento, desde que o cordão umbilical lhe foi cortado. Mas agora os tambores rufam para a escolha da noiva e a cidade lamenta-se»

Ao ouvir estas palavras, o rosto de Enkidu empalideceu. «Eu irei ao lugar onde Gilgamesh reina sobre o povo, eu o desafiarei corajosamente, e em voz alta gritarei em Uruk:


Eu vim para alterar o curso das coisas, pois aqui sou o masi forte.»

Então Enkidu caminhou à frente e a mulher seguiu atrás dele. Entrou em Uruk, o grande mercado, e todas as pessoas se aglomeravam `asua volta enquanto esteve nas ruas de uruk, a de fortes muralhas. O povo atropelava-se; falando dele diziam:

«É o estilete de Gilgamesh.»

«É mais pequeno.»

«É mais largo de ossos.»

«Este é o que foi criado com o leite dos animais bravios. Dele é a maior força.»

Os homens rejubilavam:

«Agora Gilgamesh encontrou um adversário. Este grande homem, este herói cuja beleza é semelhante à de um deus, pode competir até com Gilgamesh.»

Em Uruk estava feita a cama nupcial, digna da deusa do amor. A noiva esperava o noivo, mas de noite Gilgamesh levantou-se e foi a casa. Então Enkidu saiu, pôs-se na rua e barrou o caminho. Chegou o poderoso Gilgamesh e Enkidu encontrou-se com ele à entrada. Atravessou o pé e impediu que Gilgamesh entrasse na casa, e então agarraram-se um ao outro como touros. Quebraram as ombreiras da porta e as paredes foram sacudidas, resfolgavam como touros enganchados. Destruíram as ombreiras da porta e as paredes foram sacudidas. Gilgamesh dobrou o joelho com o pé assente no chão, e com uma volta Enkidu foi derrubado. Então imediatamente a sua fúria faleceu. Quando Enkidu foi derrubado, disse a Gilgamesh:

«Não há no mundo outro como tu. Ninsun, que é tão forte como um boi selvagem no estábulo, foi a mãe que te gerou, e agora ergues-te acima de todos os homens; e Enlil deu-te a realeza, porque a tua força ultrapassa a força dos homens.»

E então Enkidu e Gilgamesh abraçaram-se, e foi selada a sua amizade.


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Atlândida 1
Pintura de Luís Tavares
Colecção particular

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Somos sonhados. Isso parece-me plausível. Por quê? Por quem? Não me parecem perguntas importantes...



Mas que estamos nalgum lugar que nos sonha já aceito melhor.



E como o sonho é sempre reportável, o que nos sonha também é sonhado.


















«Os seres humanos não são objectos; não têm solidez. São seres redondos, luminosos; são limitados. O mundo dos objectos e da solidez é somente uma descrição que foi criada para ajudá-los a tornar mais cómoda sua passagem sobre esta terra.» p.145




«A razão deles os faz esquecer que a descrição é apenas uma descrição e, antes que percebam, os seres humanos encerram a totalidade de si mesmos num círculo vicioso do qual eles raramente emergem durante a sua vida.» p.146




«Os seres humanos são percebedores, mas o mundo que percebem é uma ilusão: uma ilusão criada pela descrição que lhes foi ensinada desde o momento que nasceram.


Assim, em essência, o mundo que a razão deles quer sustentar é o mundo criado por uma descrição e suas regras dogmáticas e invioláveis, que a razão deles aprende a aceitar e a defender». p.147




Carlos Castaneda, Porta para o Infinito.









Vou supor o que poderia Castaneda responder perante a alguém que pretendesse refutar a sua tese voltando-a contra si própria.



Por exemplo:






Interlocutor X: O senhor pretende afastar-se duma perspectiva teórica da «descrição». E no entanto, nessa tomada de posição de afastamento o senhor não deixa de descrever ao refutar a «descrição».






Responderia:






Castaneda: Sim, mas não debaixo da descrição que você faz disto; quer dizer, disto que eu descrevo.

transferido dum post 25/05/2008
"No último momento o Alcestes de Eurípedes é agraciado pelos deuses. No instante supremo, Deus dispensa Abraão do sacrifício atroz. Não é que o sofrimento tenha, como o fogo purificante da catártica, virtudes desinfectantes: trata-se antes de que a infelicidade absoluta garante a inocência do infeliz, - na condição, bem entendido, que este «infeliz» não enviese para a graça presumida, não apague a dispensa final, não especule clandestinamente sobre a eficácia redentora de sua infelicidade, não jogue ele mesmo, em suma, a comédia desta infelicidade olhando-se ao espelho como se tratasse da infelicidade de outro. O trágico que se torna tragédia, o desespero que redunda em «disperato» de teatro, o infeliz cujo desenlace está previsto são antes de tudo imagens num espelho e diversões para consciências impuras."






Jankélévitch, V. Le Pur et L'Impur, Paris, col.champs, Flammarion, 1978, p.292.






Neste interessante fragmento o que mais merece atenção não são as questões do puro e do impuro nas suas oposições. Mas antes como o autor faz circular essas questões de uma para a outra para as reformular. Mostrando a complexidade do quase nada (presque rien) das suas relações opostas para o quase tudo (presque tout) dessas mesmas. Se bem que do nosso ponto de vista Jankélévitch seja um pensador da moral, e por isso, não deixe de ter como referenciais importantes da sua reflexão as questões do puro e do impuro, do bem e do mal, etc. Donde que inevitavelmente estes binómios tendam a prevalecer enquanto 'leimotivs'.

Transferido dum post 25/07/2008
"R136. O primeiro paradigma resulta do mito inicial e do homem-que conhece como animal que luta pela vida, o intelecto sendo um suplemento para obviar à sua fraqueza em tal luta. Luta de forças, entre fracos e fortes (cfP25), o que está em jogo é a conservação da vida (cf.P44), o dano causado: na sua esteira, o homem de razão será caracterizado pela busca de protecção, de segurança (cf. SEQ. XII), pela precisão, necessidade, pobreza, pelo trabalho, pela utilidade, enfim como servidor (SEQ. XIII); enquanto que o homem intuitivo será caracterizado pelo excesso, na alegria e nas festas das saturnais, na liberdade, como na dor (SEQ.XIV), ou seja, como senhor. Servidor ou senhor, consoante a sua relação à linguagem.



R137. É nesta paradigmatica que é introduzido o fingimento ou dissimulação, a Verstellung, e o seu correlato, a ilusão. Prévias à génese, efeito fundamentalmente do intelecto como suplemento, dissimulação e ilusão são prévias assim à verdade, a qual se situa apenas no segundo tempo da génese e será um meio útil de conservação do homem racional, seja o homem de acção, seja o homem da ciência, homem da verdade, pois. Em contraste, o homem intuitivo será o homem da ilusão, da dissimulação, do sonho, do carnaval, do jogo, do mito, da arte, da poesia. É certo que o homem da verdade, submetido aos conceitos, também releva das originárias ilusão e dissimulação, mas esquecido e inconscient de tal por via da génese, sob forma de distorção pela rigidez e regularidade do edifício conceptual. (itálicos nossos)."



Belo, F., Leituras de Aristóteles e de Nietzsche, Lisboa, Gulbenkian, 1994, p.269.

transf. de post de 25/07/08



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Luz helénica
Ou Atlântida 1
Obra desaparecida
Autor: Luís Tavares


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1. O conceito arcaico


"A crença na sobrevivência pessoal sob a forma de espectro é uma brecha no sistema das analogias cosmomórficas da morte-renascimento, mas uma brecha originária fundamental, por meio da qual o indivíduo exprime a sua tendência a salvar a sua integridade para além da decomposição.

Desde o paleolítico que se encontram mortos acompanhados das armas e de alimentos, desde as sociedades rudimentares de colheita - como os Yokuts da Califórnia meridional - que os mortos vivem a sua própria vida, como os vivos, e, na humanidade arcaica passada e presente, essa crença é não menos universal do que a de morte-renascimento, com a qual, como vimos no capítulo anterior, ela se mistura e sincretiza. Valéry escreve, resumindo Frazer:


Da Melanésia a Madagáscar, da Nigéria à Colômbia, cada povo teme, evoca, alimenta e utiliza os seus mortos; mantém relações comerciais com eles; atribui-lhes função positiva na vida, suporta-os como parasitas, acolhe-os como hóspedes mais ou menos desejáveis, atribui-lhes necessidades, intenções e poderes (1).


Esses mortos não são princípios desencarnados e portanto, os termos «almas» e «espíritos», embora ainda usuais, não correspondem a esse conceito primitivo. Contudo, a despeito dos anacronismos de tradução que possam haver cometido, os fundadores da etnologia apreenderam perfeitamente a natureza corpórea dos mortos. Se são frequentemente invisíveis, são-no à maneira do homem invisível de Wells, que tem corpo. São espectros dotados de forma, fantasmas, como o havia já comentado Tylor, à imagem exacta dos seres vivos. São verdadeiros duplos, como, com grande perspicácia, o havia revelado Spencer.

É essa mesma realidade universal do «duplo» que é traduzida pelo Eidolon grego, tão mencionado por Homero, pelo Ka egípcio, pelo Genius romano, pelo Rephaim hebraico, pelo Frevoli ou Fravashi persa, pelos fantasmas e espectros do nosso folclore, pelo «corpo astral» dos espíritas, e até por vezes pela «alma», segundo certos padres Igreja. O duplo é âmago de toda a representação arcaica que diz respeito aos mortos.

Mas esse duplo não é tanto a reprodução, a cópia conforme post mortem do indivíduo falecido: acompanha o vivo durante toda a sua existência, duplica-o, e este último sente-o, conhece-o, ouve-o e vê-o, por meio de uma experiência quotidiana e quotinocturna, nos seus sonhos, na sua sombra, no seu reflexo, no seu eco, no seu hálito, no seu pénis e até nos seus gases intestinais."




(1) Valéry, no prefácio de La crainte des morts, de Frazer.



Edgar Morin, O Homem e a Morte, Lisboa, Trad. J.G. Boto e A. S. Rodrigues, Europa América, p.125.

Transferido de post de 31/07/08




Atlântida 3
Pintura de Luís de Barreiros Tavares
Colecção: Luísa Pinto Ramos


" Doravante, a aceleração serve menos para nos deslocarmos facilmente (intervalo) do que para vermos, para entrevermos com maior ou menor nitidez (interface), já que a «alta definição do real» depende exclusivamente da maior ou menor celeridade de transmissão das aparências, e não já apenas da transparência da atmosfera ou dos diversos materiais.

Para compreendermos hoje devidamente a importância do «analisador» que a velocidade representa (em particular, a velocidade audiovisual), há que voltar uma vez mais à sua definição filosófica: «A velocidade não é um fenómeno, é a relação entre os fenómenos», ou por outras palavras a própria relatividade, a transparência da realidade das aparências, mas uma «transparência espácio-temporal» que sucede aqui à transparência espacial da geometria linear das lentes ópticas. Daí o termo de trans-aparência para designar as aparências electronicamente transmitidas, qualquer que seja o intervalo de espaço que as separa do observador; esse observador doravante escravizado, tornado inseparável do objecto observado graças à própria imediaticidade da interface, desse bem nomeado «terminal» que coroa a extensão e a duração de um mundo reduzido à comutação homem-máquina, onde a «profundidade espacial» da geometria perspectivistica cede repentinamente o lugar à profundidade temporal de uma perspectiva em tempo real que substitui aperspectiva renascentista do espaço real."




Virilio, P., A Inércia Polar, trad. Ana Luísa Faria, Lisboa, Dom Quixote, 1993, p.87.

transferido de outro post em 01/08/2008

"Expliquei na minha conferência que o ideal da ciência é obter aquilo a que chamei «síntese computacional dos fenómenos», ou seja, reproduzir, a partir de equações ou de programas de computadores, uma espécie de duplo da realidade empírica. Por exemplo, o ideal da mecânica clássica é utilizar a equação de Newton, resolvê-la através de um grande computador, e obter uma imagem perfeitamente exacta dos anéis de Saturno."

Jean Petitot em entrevista (conduzida por Nuno Nabais), Expresso, 9 de Novembro de 1996.

Trata-se de uma admirável explicação - concisa, exacta, de uma clareza sem mácula - daquilo que a ciência quer: criar uma realidade virtual. Em rigor, é isso que nem a poesia nem a filosofia nem a arte querem ou podem querer.

Desde logo, uma advertência: é de evitar ver nesta apreciação qualquer traço litigioso entre ciência e filosofia; decisivo é, ao invés, sublinhar sem qualquer equívoco o que separa a ciência, assim estabelecida, da filosofia e da poesia. Nesse sentido, é necessário pôr a descoberto a diferença específica entre o mundo tal como a ciência o vê: uma ocasião para a geração, em imagem dupla, de outro mundo em que o primeiro fique integrado, e aquilo que se liberta do mundo pelo esforço de que seja feita uma apresentação poética, filosófica ou artística. Por outras palavras, o grande sonho (bem acordado) da ciência é produzir um mundo que replique, reproduza, o mundo que há, através de modelos e operadores complexos - neste caso, electrónicos -, o que tem como resultado a transformação do mundo que há no mundo a que temos acesso, por meio desses mesmos modelos e operadores. Este resultado final é em tudo contrário ao anseio de que a representação se solte, se descole da própria coisa como outros tantos aspectos da sua fisionomia. E aqui poderíamos evocar, a título de exemplo e para lá das suas especificações irredutíveis, Platão e Goethe, Espinosa, Benjamin ou Wittgenstein; como também é contrário à visão de que a literatura autêntica seja aquela que acabe por abraçar a realidade, recorrendo àquilo a que Hermann Broch chama os «vocábulos de realidade», ou, como igualmente lhes chama Mandelstam, «ornamentos», cuja energia expressiva alimenta a recitação da natureza, i.e, a poesia, isso que é um efeito de uma impotência da alma em absorver a realidade mesma, como de modo excelente nos esclarece Jorge de Sena, ou ainda, por escavação no breu que ameaça sempre devorar-nos, fazer cintilar aquilo que espera também sempre poder cintilar, como diz Giorgio Colli que escavaram Stendhal e Proust, e, uma vez mais ainda, acrescentar um aspecto à nostalgia indestrutível de um mundo melhor, como é o caso de Gerhard rRchter, no momento em que se interroga sobre o valor de uma estúpida demonstração dos pincéis.

O cientista russo Vernadsky retomou uma teoria segundo a qual existiria em volta da terra uma «noosfera»: uma espécie de envelope em que estaria arquivada a memória das culturas. Ela conteria todas as ideias, imagens e concepções desenvolvidas pela humanidade, desde o seu começo até aos nossos dias . Seria preferível entrar em contacto com essa noosfera do que com a Internet.

Veja a história da representação: os dedos traçando sinais na areia, depois com pigmentos nas paredes das cavernas, depois no papel ou noutro material, depois a fotografia, o cinema, o vídeo, as imagens numéricas, a realidade virtual - todos sabemos que a representação se tornou indiscernível do mundo real. Cada vez vivemos mais num mundo construído como o dos sonhos: o que nos faz apreciar melhor os prazeres sensuais do mundo natural, a sua beleza sublime.

Ilya Kabakov e Tm Shannon, respectivamente."

in: Molder, M. F., A Imperfeição da Filosofia, Lisboa, Rel. D'água, 2003, p.128

Leitura:

1. "(...)uma ocasião para a geração, em imagem dupla, de outro mundo em que o primeiro fique integrado(...)

(...) produzir um mundo que replique, reproduza, o mundo que há, através de modelos e operadores complexos (...)

(...) o que tem como resultado a transformação do mundo que há no mundo a que temos acesso (...)



Dir-se-ia haver na ciência a tentativa de surpreender a surpresa do mundo que há de dentro e a do mundo que há de fora («o mundo que há no mundo»). Quer dizer, a ciência parece pretender uma re-produção que surpreenda aquela surpresa do mundo através de um decalque representativo («produzir um mundo que replique, reproduza» (sublinhados nossos)). Enfim, uma vontade de domínio segundo outros moldes (ou outros modelos?).



2. Há aqui uma subtil ironia. É que apesar de e porque (expressão tão utilizada por Vladimir Jankélévitch, «bien que et parce que») " cada vez vivemos mais num mundo construído como o dos sonhos: o que nos faz apreciar melhor os prazeres sensuais do mundo natural, a sua beleza sublime" não deixa de haver, no entanto, uma nuance, não «litigiosa» entre ciência e filosofia. Mas como que um apelo a um relance de dados, pois também há «a imperfeição da filosofia».

Transferido de outro post 04/08/2008

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

«Para o homem racional, manter a fixação de sua auto-imagem assegura a sua ignorância abissal. Ele ignora o facto de que o xamanismo não significa encantamentos e embromação, mas a liberdade para perceber, não só o mundo tomado sem discussão, mas tudo o mais que é humanamente possível realizar. Ele treme diante da possibilidade da liberdade. E a liberdade está ao alcance das mãos.»


Carlos Castaneda, A Roda do Tempo, citação de O Poder do Silêncio, Nova Era, Rio de Janeiro, p.294.


A nossa «auto-imagem» não deve ser uma imagem fotográfica ou uma imagem de retrato (de fachada), quer dizer de «embromação». Nem uma imagem de «encantamentos» (de adorno, de enfeite, etc.). Ela deverá ser um movimento de ressalto destes efeitos gorados. Uma extra-sensação, um sopro de extra-sensações, de extra-percepções abstractas na sua descolagem desafectada. Estas extra-sensações abstractas re-configuram outra imagem sempre reenviada num livre-trânsito (usando uma metáfora, como nos passes sociais dos transportes). Uma espécie de co-presença (presença a si) do corpo. Todavia, co-presença invisível no sentido de não ser do plano da vulgar visualização (da trivial auto-visualização).


A visualização, a surgir, só surge quando o novo olhar de um outro-novo «nada», ou de um «vazio», de um invisível que já não assusta - que já não é o vazio ou nada do niilismo ocidental ("o niilismo, o mais temível de todos os hóspedes", Heidegger, Carta Acerca do Humanismo), da «ignorância abissal» (Castaneda), mas o olhar da co-presença do corpo (corpo-olhar), do corpo não re-presentado como dado adquirido, mas de um in-visível que é o não figurado, in-visível que atravessa agora o visível. A visualização só surge, dizia, quando este novo olhar é a imagem do próprio olhar. A visualização só surge quando o corpo olha. Ou antes, quando o olhar é feito corpo. Não propriamente enquanto corpo projectado, mas à maneira do que releva do facto real de que o cosmos nos reflecte. Este é como se sabe um dos pontos de vista da teoria do corpo espelho.


Aqui o olhar é mais do que o ver. É mais do que ele; não porque o ultrapasse, mas porque já não visa o «ver sempre ainda mais» que é o risco que o ver tende sempre a correr.
E no entanto, mais fulgurante do que isto não será escutar o seu silêncio?
«Pode-se agora voltar à questão de saber porque é que Aristóteles não pensou o signo. Os Estoicos acrescentaram ao par nome/coisa um terceiro termo, o Lékton ( ou significação), com o estatuto ontológico de 'incorporal' (tal como o vazio, o lugar e o tempo). Ora, o fundador da escola da Stoa, Zenão de Cítio, era semita de origem e só aprendeu o grego na escola, era bilingue: a tradução era-lhe pois familiar como aos Gregos clássicos não. Quando se quer pensar o que não muda, o bilingue põe a questão de maneira diferente do que só fala-pensa em grego. A ousia (substância) das coisas não muda , foi Aristóteles quem no-lo ensinou; os nomes mudam consoante as línguas , Aristóteles sabe-o 'em teoria' (ver início de Da Interpretação), Zenão sabe-o 'na prática'; o lékton não muda segundo Zenão, e disso Aristóteles não diz nada, isso não lhe diz nada a ele, que só fala grego. O signo é helenístico, pressupõe a tradução, que sem ele não se pode fazer. E consuma a separação do triedro: o pensamento como lékton ou sentido, a realidade como coisa ou referente e a linguagem como nome ou palavra. Esta sendo a única que muda, está de si mesma destinada à subordinação com 'organon' (instrumento).»
Fernando Belo; Seja um Texto de Paixão, Suplemento a: Filosofia e Ciências da Linguagem, Lisboa, Colibri, secção 32; p.30.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Empédocles




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Atlântida 5
Pintura de Luís Tavares
Colecção privada


"A double tale will I tell: at one time it grew to be one only from many, at another it divided again to be many from one. There is a double coming into being of mortal things and a double passing away. One is brought about, and again destroyed, by the coming together of all things, the other grow up and is scattered as things are again divided. And these things never cease from continual shifting, at one time all coming together, through Love, into one, at another each born apart from the others through Strife. (So, in so far as they have learnt to grow into one from many,) and again, when the one is sundered, are once more many, thus far they come into come into being and they have no lasting life; but in so far as they never cease from continual interchange of places, thus far are they ever changeless in the cycle."

Fr. 17, 1-13, Simplicius Phys. 158, 1

Kirk, G.S., & Raven, J.E., The Presocratic Philosophers, University Press, Cambridge, 1975.

" Vou contar uma dupla história: de uma vez cresceu para ser um só a partir de muitos, de outra, dividiu-se de novo para ser muitos a partir de um. Há um duplo nascimento das coisas mortais e um duplo deixar de existir. Um é gerado e depois destruído, pela junção de todas as coisas, o outro cresce e é espalhado à medida que as coisas de novo se dividem. E estas coisas nunca cessam o seu mover contínuo, ora convergindo num todo, graças ao Amor, ora cada uma separada das outras pela Discórdia. (Assim, na medida em que aprenderam a fazer-se num a partir de muitos) e de novo, quando esse um está separado, são uma vez mais muitos, assim nascem e não têm vida duradoura; mas, na medida em que nunca cessam a intermutação contínua de lugares, nessa medida eles são sempre imutáveis no ciclo."

Empédocles, Fr.17, 1-13, in Simplício, Phys., 158,1
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Trad.: Kirk e Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos, trad. C.A.L. Fonseca, B.R. Barbosa, M.A.Pegado, Gulbenkian, Lisboa.

"But come, hearken to my words; for learning increaseth wisdom. As I said before when I declared the limits of my words, a double tale will I tell: at one time is grew to be one only from many, at another it divided again to be many from one, fire and water and earth and the vast height of air, dread Strife too, apart from these, everywhere equally balanced, and Love in their midst, equal in lenght and breadth. On her to thou gaze with the mind, and sit not with dazed eyes; for she is recognized as inborn in mortal limbs; by her they think kind thoughts and do the works of concord, calling her Joy by name and Aphrodite. Her does no mortal man know as she whirls around amid the others; but do thou pay heed to the undeceitful ordering of my discourse. For all these are equal, and of like age, but each has a different prerogatif and its own character, and in turn they prevail as time comes round. And besides these nothing else comes into being nor ceases to be; for if they were continually being destroyed, they would no longer be; and what could increase this whole, and whence could it come? And how could these things perish too, since nothing is empty of them? Nay, there are these things alone, and running through one another they become now this and now that and yet remain ever as they are."


Fr.17, 1. 14, Simplicius Phys. 158,13 (continuing Fr. 1. 17, 1-13)

Op.cit.


" Mas anda, atenta nas minhas palavras; pois aprender aumenta a sageza. Como disse anteriormente, quando declarei os limites das minhas palavras, vou contar uma dupla história: de uma vez, cresceu para ser um só a partir de muitos, doutra, dividiu-se outra vez para ser muitos a partir de um, o fogo e a água e a terra e a vasta altura do ar, e também a discórdia temível separada destes, em toda a parte igualmente equilibrada, e o amor no meio deles, igual em comprimento e largura. Para ele olha com o espírito e não fiques com os olhos ofuscados; pois ele é reconhecido como inato nos membros imortais; por ele são eles capazes de pensamentos bons e de praticar obras de concórdia, dando-lhe o nome de Alegria e a Afrodite. Nenhum homem mortal o conhece, quando ele rodopia no meio dos outros; mas presta atenção à ordenação do meu discurso que não engana. Pois todos estes são iguais e de idade igual, mas cada um tem uma prerrogativa diferente e o seu próprio carácter, e prevalece cada um, por sua vez, à medida que o tempo gira. E além destes, nada mais se gera nem cessa existir; porque se estivessem a ser continuamente destruídos, já não existiriam; e o que poderia aumentar este todo e de onde poderia vir? E como poderiam estas coisas perecer também, visto que nada está vazio delas? Não, há somente estas coisas, e correndo umas pelas outras, elas tornam-se umas vezes isto, outras aquilo, e permanecem, contudo, sempre como são."

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Empédocles, Fr.17, v.14, in Simplício, Phys., 158, 13 (continuação de Fr.17, 1-13)

Trad.: Op.cit.

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