quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

"Expliquei na minha conferência que o ideal da ciência é obter aquilo a que chamei «síntese computacional dos fenómenos», ou seja, reproduzir, a partir de equações ou de programas de computadores, uma espécie de duplo da realidade empírica. Por exemplo, o ideal da mecânica clássica é utilizar a equação de Newton, resolvê-la através de um grande computador, e obter uma imagem perfeitamente exacta dos anéis de Saturno."

Jean Petitot em entrevista (conduzida por Nuno Nabais), Expresso, 9 de Novembro de 1996.

Trata-se de uma admirável explicação - concisa, exacta, de uma clareza sem mácula - daquilo que a ciência quer: criar uma realidade virtual. Em rigor, é isso que nem a poesia nem a filosofia nem a arte querem ou podem querer.

Desde logo, uma advertência: é de evitar ver nesta apreciação qualquer traço litigioso entre ciência e filosofia; decisivo é, ao invés, sublinhar sem qualquer equívoco o que separa a ciência, assim estabelecida, da filosofia e da poesia. Nesse sentido, é necessário pôr a descoberto a diferença específica entre o mundo tal como a ciência o vê: uma ocasião para a geração, em imagem dupla, de outro mundo em que o primeiro fique integrado, e aquilo que se liberta do mundo pelo esforço de que seja feita uma apresentação poética, filosófica ou artística. Por outras palavras, o grande sonho (bem acordado) da ciência é produzir um mundo que replique, reproduza, o mundo que há, através de modelos e operadores complexos - neste caso, electrónicos -, o que tem como resultado a transformação do mundo que há no mundo a que temos acesso, por meio desses mesmos modelos e operadores. Este resultado final é em tudo contrário ao anseio de que a representação se solte, se descole da própria coisa como outros tantos aspectos da sua fisionomia. E aqui poderíamos evocar, a título de exemplo e para lá das suas especificações irredutíveis, Platão e Goethe, Espinosa, Benjamin ou Wittgenstein; como também é contrário à visão de que a literatura autêntica seja aquela que acabe por abraçar a realidade, recorrendo àquilo a que Hermann Broch chama os «vocábulos de realidade», ou, como igualmente lhes chama Mandelstam, «ornamentos», cuja energia expressiva alimenta a recitação da natureza, i.e, a poesia, isso que é um efeito de uma impotência da alma em absorver a realidade mesma, como de modo excelente nos esclarece Jorge de Sena, ou ainda, por escavação no breu que ameaça sempre devorar-nos, fazer cintilar aquilo que espera também sempre poder cintilar, como diz Giorgio Colli que escavaram Stendhal e Proust, e, uma vez mais ainda, acrescentar um aspecto à nostalgia indestrutível de um mundo melhor, como é o caso de Gerhard rRchter, no momento em que se interroga sobre o valor de uma estúpida demonstração dos pincéis.

O cientista russo Vernadsky retomou uma teoria segundo a qual existiria em volta da terra uma «noosfera»: uma espécie de envelope em que estaria arquivada a memória das culturas. Ela conteria todas as ideias, imagens e concepções desenvolvidas pela humanidade, desde o seu começo até aos nossos dias . Seria preferível entrar em contacto com essa noosfera do que com a Internet.

Veja a história da representação: os dedos traçando sinais na areia, depois com pigmentos nas paredes das cavernas, depois no papel ou noutro material, depois a fotografia, o cinema, o vídeo, as imagens numéricas, a realidade virtual - todos sabemos que a representação se tornou indiscernível do mundo real. Cada vez vivemos mais num mundo construído como o dos sonhos: o que nos faz apreciar melhor os prazeres sensuais do mundo natural, a sua beleza sublime.

Ilya Kabakov e Tm Shannon, respectivamente."

in: Molder, M. F., A Imperfeição da Filosofia, Lisboa, Rel. D'água, 2003, p.128

Leitura:

1. "(...)uma ocasião para a geração, em imagem dupla, de outro mundo em que o primeiro fique integrado(...)

(...) produzir um mundo que replique, reproduza, o mundo que há, através de modelos e operadores complexos (...)

(...) o que tem como resultado a transformação do mundo que há no mundo a que temos acesso (...)



Dir-se-ia haver na ciência a tentativa de surpreender a surpresa do mundo que há de dentro e a do mundo que há de fora («o mundo que há no mundo»). Quer dizer, a ciência parece pretender uma re-produção que surpreenda aquela surpresa do mundo através de um decalque representativo («produzir um mundo que replique, reproduza» (sublinhados nossos)). Enfim, uma vontade de domínio segundo outros moldes (ou outros modelos?).



2. Há aqui uma subtil ironia. É que apesar de e porque (expressão tão utilizada por Vladimir Jankélévitch, «bien que et parce que») " cada vez vivemos mais num mundo construído como o dos sonhos: o que nos faz apreciar melhor os prazeres sensuais do mundo natural, a sua beleza sublime" não deixa de haver, no entanto, uma nuance, não «litigiosa» entre ciência e filosofia. Mas como que um apelo a um relance de dados, pois também há «a imperfeição da filosofia».

Transferido de outro post 04/08/2008

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