quarta-feira, 26 de janeiro de 2011




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Luz helénica
Ou Atlântida 1
Obra desaparecida
Autor: Luís Tavares


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1. O conceito arcaico


"A crença na sobrevivência pessoal sob a forma de espectro é uma brecha no sistema das analogias cosmomórficas da morte-renascimento, mas uma brecha originária fundamental, por meio da qual o indivíduo exprime a sua tendência a salvar a sua integridade para além da decomposição.

Desde o paleolítico que se encontram mortos acompanhados das armas e de alimentos, desde as sociedades rudimentares de colheita - como os Yokuts da Califórnia meridional - que os mortos vivem a sua própria vida, como os vivos, e, na humanidade arcaica passada e presente, essa crença é não menos universal do que a de morte-renascimento, com a qual, como vimos no capítulo anterior, ela se mistura e sincretiza. Valéry escreve, resumindo Frazer:


Da Melanésia a Madagáscar, da Nigéria à Colômbia, cada povo teme, evoca, alimenta e utiliza os seus mortos; mantém relações comerciais com eles; atribui-lhes função positiva na vida, suporta-os como parasitas, acolhe-os como hóspedes mais ou menos desejáveis, atribui-lhes necessidades, intenções e poderes (1).


Esses mortos não são princípios desencarnados e portanto, os termos «almas» e «espíritos», embora ainda usuais, não correspondem a esse conceito primitivo. Contudo, a despeito dos anacronismos de tradução que possam haver cometido, os fundadores da etnologia apreenderam perfeitamente a natureza corpórea dos mortos. Se são frequentemente invisíveis, são-no à maneira do homem invisível de Wells, que tem corpo. São espectros dotados de forma, fantasmas, como o havia já comentado Tylor, à imagem exacta dos seres vivos. São verdadeiros duplos, como, com grande perspicácia, o havia revelado Spencer.

É essa mesma realidade universal do «duplo» que é traduzida pelo Eidolon grego, tão mencionado por Homero, pelo Ka egípcio, pelo Genius romano, pelo Rephaim hebraico, pelo Frevoli ou Fravashi persa, pelos fantasmas e espectros do nosso folclore, pelo «corpo astral» dos espíritas, e até por vezes pela «alma», segundo certos padres Igreja. O duplo é âmago de toda a representação arcaica que diz respeito aos mortos.

Mas esse duplo não é tanto a reprodução, a cópia conforme post mortem do indivíduo falecido: acompanha o vivo durante toda a sua existência, duplica-o, e este último sente-o, conhece-o, ouve-o e vê-o, por meio de uma experiência quotidiana e quotinocturna, nos seus sonhos, na sua sombra, no seu reflexo, no seu eco, no seu hálito, no seu pénis e até nos seus gases intestinais."




(1) Valéry, no prefácio de La crainte des morts, de Frazer.



Edgar Morin, O Homem e a Morte, Lisboa, Trad. J.G. Boto e A. S. Rodrigues, Europa América, p.125.

Transferido de post de 31/07/08



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