quinta-feira, 14 de abril de 2011

.




"O vocábulo chinês que significa a palavra, o sinal sonoro ou escrito, o nome, é o mesmo que serve para designar a própria vida ou destino: ming [falta aqui representar o pictograma; desconhecemos os passos necessários]. A vida, assinalada pelo seu destino, marcada no seu começo e no seu fim, numa palavra, com os seus signos próprios, é uma cifra, uma letra, ou um sinal, tal como, por outro lado, os sinais têm também a sua vida. Quererá isto dizer a equação segundo a qual não haverá vida sem sinal, ou sinal sem vida? O sentido arquetípico desta designação parece adensar ainda mais o sentido organicista e funcional de uma linguagem em que nada se pode definir de modo absoluto e estático, porque absoluta só é a relação e o dinamismo global. O dizer - yen (1), como um 'mostrar', a acção da boca e o gesto ostensivo, refere o poder da própria palavra no sentido da invocação eficaz, ou seja, do estatuto mágico segundo o qual saber o nome é ter poder sobre a coisa, ou melhor, realizá-la.



Independentemente da arte de tcheng ming, isto é, de 'correcta designação', assimilável à recta ratio do moderno pensamento europeu, o que importa sublinhar é o lugar vital, ritual, ou a ordem dinâmica em que se situa a linguagem como intermédio entre a abstracção do ser material estático, e a abstracção da imóvel ordem da idealidade.



Aquém ou além do excessivo, ming é a medida do que pode e deve ser dito, tal como é ainda possível reconstituir nos radicais do seu símbolo gráfico. Ming é um carácter formado pela justaposição dos sinais da boca e da tarde, isto é, do chamamento invocado por essa abertura da boca, e do crepúsculo que separa o dia da noite, representado pelo grafismo da Lua que se começa a ver emergindo no horizonte. Na penumbra do momento, assim assinalado, é necessário o nome como o chamamento que identifica alguém, ou seja, é necessário dizer-se o nome para ser conhecido, não havendo já luz para se ver, sem nome, nem ainda treva que não permita reconhecer a quem o nome pertence ou é dado. Reputa-se de grande importância este carácter médio, esta condição 'penumbrática' do nome dos signos da língua chinesa, pois, recuperando ainda a tradição arqueológica acerca da origem destes signos, encontra-se no nó (fu), o momento médio das duas pontas da corda, sendo o signo, a um tempo, coalescente e diferencial. Mas esta condição do significar torna-se ainda mais óbvia se se recordar a legendária criação dos kua ou trigramas Fo-Hi, depois deste sábio e santo homem ter, segundo a tradição, examinado o Céu e a Terra, e procurado, enfim, a natureza de coisas médias.




O âmbito expressivo do signo no seu grafismo parece implicar o recorte espacial, a delimitação de uma área onde ainda se veja claro. É curiosa a comparação, sobre este aspecto, do grafismo chinês, com alguns ideogramas da civilização Maya, pois, naqueles que implicam o sentido da «palavra» encontra-se o sinal gráfico de uma cercadura, ou de uma inclusão, denotando o seu significado como signo «fechado». A palavra ou o falar em maya (t'an) anda, portanto, associada à «boca», mas também à «cerca» ou «caixa» que delimita o que se diz. T'an representa deste modo um dito que se vela, mesmo quando se re-vela: ou seja, 'a palavra é sempre sagrada'»



(1) Desconhecemos as ferramentas para incluir o pictograma neste post.




Silva, C. (Carlos Henrique do Carmo Silva) (1984), "Dos Signos Primitivos: preliminares etiológicos para uma reflexão sobre a essência da linguagem" In: Análise, vol.1, nº2, 1984.


Breve comentário:
Interessantes passagens de um profundo artigo deste autor.
No entanto não me dispenso de fazer uma breve observação relativamente ao último parágrafo: Mas por que é que a 'cerca' ou a 'caixa' 'delimitam' no sentido de fechamento ("denotando o seu significado como signo fechado")? Porque não havemos de dar um sentido de abertura dessas mesmas 'cerca' ou 'caixa'? Tal como acontece com a metáfora do 'poro' ou da 'porta', p.ex., a 'cerca' e a 'caixa' também indicam o sentido de abertura a partir precisamente da sua de-limitação. É estranho que o autor não mencione este aspecto. Dá a impressão que não deu por ele...


.
Depois também é interessante ver as vezes em que o termo 'tradição' é utilizado.


Aqui a questão da intermediariedade remete visivelmente para uma tradição de pensamento do plano da 'inteligibilidade', quer dizer, de uma invisibilidade que vê, ou de uma visibilidade do invisível de vertente platónica. Por isso, intermediariedade associada à anterioridade. E interioridade com tradição num pensamento do intus-legere (latim: do ver em, ver dentro; quer dizer, de um ver que se pretende ver fora e dentro - pois atravessa, no seu ver, através das aparências - mas que não deixa no entanto de se estabelecer num plano neutral, pretensamente indiferente - mas afim a uma hierarquia do real e das coisas culminando na idealidade platónica. Enfim, a inteligibilidade de um plano intermédio que acaba por recair no plano médio da neutralidade e de uma indiferença teorético-contemplativa, que se pretende do fora e do dentro. Mas nessa intermediariedade aspira a um «dentro» subjectivo radicado no sagrado, no teológico e no onto-teológico.

Daí que noutros textos o autor seja tão adepto do termo 'indiferença' e não antes do de 'diferença'. Basta ler a expressão 'coisas médias'. No seu texto sente-se a renúncia a uma inscrição da diferença que se reafirme em relação à diferencialidade neutral das «coisas médias». o 'diferencial' permanece na intermediariedade que acima analisámos.
Por outro lado, as «coisas médias» remetem neste autor claramente para a «mística», para o esotérico e para o hermetismo.


Assim, as «coisas médias» servirão para invocar a interioridade (aliada à anterioridade). Enfim, como meio para outro meio da ordem de um 'dentro'.


Talvez a compreensão da linguagem seja sempre, por mais que estejamos atentos, atravessada por um vazio de silêncio, que por vezes nos escapa, com seu modo, lugar e tempo em que se manifesta. Ao qual é preciso responder com o silêncio sem linguagem, com o desapego desta ainda através dela porque ecoando o outro silêncio, o outro vazio. Isto talvez se deva à nossa insuficiente compreensão da espiritualidade do Oriente. Porquê? Porque toda esta terminologia tende muitas vezes a acabar por se inscrever num registo espiritual ocidental.


Este comentário encontra-se em elaboração.

.




Sem comentários:

Enviar um comentário