quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Então ele comeu até ficar cheio e bebeu vinho forte, sete taças. Ficou alegre, o seu coração exultava e o seu rosto brilhava. Alisou o cabelo emaranhado do seu corpo e untou-se com óleo. Enkidu tornara-se um homem, ei-lo como um noivo. Pegou em armas para caçar o leão, para que os pastores pudessem descansar de noite. Apanhou lobos e leões, e os homens dos rebanhos descansaram em paz, pois Enkidu, o homem forte que não tinha rival, era o seu vigilante.

Estava contente vivendo com os pastores até que um dia, erguendo os olhos, viu um homem que se aproximava. Disse para a cortesã:

«Mulher, trás cá aquele homem. Porque veio ele? Quero conhecer o seu nome.»

Ela foi e chamou o homem, dizendo:

«Senhor, aonde vais nessa fatigante viagem?»

O homem respondeu, dizendo a Enkidu:

« Gilgamesh entrou na casa da boda e fechou a porta ao povo. Ele fez estranhas coisas em Uruk, a cidade das grandes ruas. Ao rufar o tambor o trabalho começa para os homens, começa o trabalho para as mulheres. Gilgamesh, o rei, vai celebrar casamento com a Rainha do Amor, e ainda exige ser o primeiro com a noiva, primeiro o rei e o marido a seguir, pois isso foi ordenado pelos deuse desde o seu nascimento, desde que o cordão umbilical lhe foi cortado. Mas agora os tambores rufam para a escolha da noiva e a cidade lamenta-se»

Ao ouvir estas palavras, o rosto de Enkidu empalideceu. «Eu irei ao lugar onde Gilgamesh reina sobre o povo, eu o desafiarei corajosamente, e em voz alta gritarei em Uruk:


Eu vim para alterar o curso das coisas, pois aqui sou o masi forte.»

Então Enkidu caminhou à frente e a mulher seguiu atrás dele. Entrou em Uruk, o grande mercado, e todas as pessoas se aglomeravam `asua volta enquanto esteve nas ruas de uruk, a de fortes muralhas. O povo atropelava-se; falando dele diziam:

«É o estilete de Gilgamesh.»

«É mais pequeno.»

«É mais largo de ossos.»

«Este é o que foi criado com o leite dos animais bravios. Dele é a maior força.»

Os homens rejubilavam:

«Agora Gilgamesh encontrou um adversário. Este grande homem, este herói cuja beleza é semelhante à de um deus, pode competir até com Gilgamesh.»

Em Uruk estava feita a cama nupcial, digna da deusa do amor. A noiva esperava o noivo, mas de noite Gilgamesh levantou-se e foi a casa. Então Enkidu saiu, pôs-se na rua e barrou o caminho. Chegou o poderoso Gilgamesh e Enkidu encontrou-se com ele à entrada. Atravessou o pé e impediu que Gilgamesh entrasse na casa, e então agarraram-se um ao outro como touros. Quebraram as ombreiras da porta e as paredes foram sacudidas, resfolgavam como touros enganchados. Destruíram as ombreiras da porta e as paredes foram sacudidas. Gilgamesh dobrou o joelho com o pé assente no chão, e com uma volta Enkidu foi derrubado. Então imediatamente a sua fúria faleceu. Quando Enkidu foi derrubado, disse a Gilgamesh:

«Não há no mundo outro como tu. Ninsun, que é tão forte como um boi selvagem no estábulo, foi a mãe que te gerou, e agora ergues-te acima de todos os homens; e Enlil deu-te a realeza, porque a tua força ultrapassa a força dos homens.»

E então Enkidu e Gilgamesh abraçaram-se, e foi selada a sua amizade.


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Atlândida 1
Pintura de Luís Tavares
Colecção particular

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Somos sonhados. Isso parece-me plausível. Por quê? Por quem? Não me parecem perguntas importantes...



Mas que estamos nalgum lugar que nos sonha já aceito melhor.



E como o sonho é sempre reportável, o que nos sonha também é sonhado.


















«Os seres humanos não são objectos; não têm solidez. São seres redondos, luminosos; são limitados. O mundo dos objectos e da solidez é somente uma descrição que foi criada para ajudá-los a tornar mais cómoda sua passagem sobre esta terra.» p.145




«A razão deles os faz esquecer que a descrição é apenas uma descrição e, antes que percebam, os seres humanos encerram a totalidade de si mesmos num círculo vicioso do qual eles raramente emergem durante a sua vida.» p.146




«Os seres humanos são percebedores, mas o mundo que percebem é uma ilusão: uma ilusão criada pela descrição que lhes foi ensinada desde o momento que nasceram.


Assim, em essência, o mundo que a razão deles quer sustentar é o mundo criado por uma descrição e suas regras dogmáticas e invioláveis, que a razão deles aprende a aceitar e a defender». p.147




Carlos Castaneda, Porta para o Infinito.









Vou supor o que poderia Castaneda responder perante a alguém que pretendesse refutar a sua tese voltando-a contra si própria.



Por exemplo:






Interlocutor X: O senhor pretende afastar-se duma perspectiva teórica da «descrição». E no entanto, nessa tomada de posição de afastamento o senhor não deixa de descrever ao refutar a «descrição».






Responderia:






Castaneda: Sim, mas não debaixo da descrição que você faz disto; quer dizer, disto que eu descrevo.

transferido dum post 25/05/2008
"No último momento o Alcestes de Eurípedes é agraciado pelos deuses. No instante supremo, Deus dispensa Abraão do sacrifício atroz. Não é que o sofrimento tenha, como o fogo purificante da catártica, virtudes desinfectantes: trata-se antes de que a infelicidade absoluta garante a inocência do infeliz, - na condição, bem entendido, que este «infeliz» não enviese para a graça presumida, não apague a dispensa final, não especule clandestinamente sobre a eficácia redentora de sua infelicidade, não jogue ele mesmo, em suma, a comédia desta infelicidade olhando-se ao espelho como se tratasse da infelicidade de outro. O trágico que se torna tragédia, o desespero que redunda em «disperato» de teatro, o infeliz cujo desenlace está previsto são antes de tudo imagens num espelho e diversões para consciências impuras."






Jankélévitch, V. Le Pur et L'Impur, Paris, col.champs, Flammarion, 1978, p.292.






Neste interessante fragmento o que mais merece atenção não são as questões do puro e do impuro nas suas oposições. Mas antes como o autor faz circular essas questões de uma para a outra para as reformular. Mostrando a complexidade do quase nada (presque rien) das suas relações opostas para o quase tudo (presque tout) dessas mesmas. Se bem que do nosso ponto de vista Jankélévitch seja um pensador da moral, e por isso, não deixe de ter como referenciais importantes da sua reflexão as questões do puro e do impuro, do bem e do mal, etc. Donde que inevitavelmente estes binómios tendam a prevalecer enquanto 'leimotivs'.

Transferido dum post 25/07/2008
"R136. O primeiro paradigma resulta do mito inicial e do homem-que conhece como animal que luta pela vida, o intelecto sendo um suplemento para obviar à sua fraqueza em tal luta. Luta de forças, entre fracos e fortes (cfP25), o que está em jogo é a conservação da vida (cf.P44), o dano causado: na sua esteira, o homem de razão será caracterizado pela busca de protecção, de segurança (cf. SEQ. XII), pela precisão, necessidade, pobreza, pelo trabalho, pela utilidade, enfim como servidor (SEQ. XIII); enquanto que o homem intuitivo será caracterizado pelo excesso, na alegria e nas festas das saturnais, na liberdade, como na dor (SEQ.XIV), ou seja, como senhor. Servidor ou senhor, consoante a sua relação à linguagem.



R137. É nesta paradigmatica que é introduzido o fingimento ou dissimulação, a Verstellung, e o seu correlato, a ilusão. Prévias à génese, efeito fundamentalmente do intelecto como suplemento, dissimulação e ilusão são prévias assim à verdade, a qual se situa apenas no segundo tempo da génese e será um meio útil de conservação do homem racional, seja o homem de acção, seja o homem da ciência, homem da verdade, pois. Em contraste, o homem intuitivo será o homem da ilusão, da dissimulação, do sonho, do carnaval, do jogo, do mito, da arte, da poesia. É certo que o homem da verdade, submetido aos conceitos, também releva das originárias ilusão e dissimulação, mas esquecido e inconscient de tal por via da génese, sob forma de distorção pela rigidez e regularidade do edifício conceptual. (itálicos nossos)."



Belo, F., Leituras de Aristóteles e de Nietzsche, Lisboa, Gulbenkian, 1994, p.269.

transf. de post de 25/07/08



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Luz helénica
Ou Atlântida 1
Obra desaparecida
Autor: Luís Tavares


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1. O conceito arcaico


"A crença na sobrevivência pessoal sob a forma de espectro é uma brecha no sistema das analogias cosmomórficas da morte-renascimento, mas uma brecha originária fundamental, por meio da qual o indivíduo exprime a sua tendência a salvar a sua integridade para além da decomposição.

Desde o paleolítico que se encontram mortos acompanhados das armas e de alimentos, desde as sociedades rudimentares de colheita - como os Yokuts da Califórnia meridional - que os mortos vivem a sua própria vida, como os vivos, e, na humanidade arcaica passada e presente, essa crença é não menos universal do que a de morte-renascimento, com a qual, como vimos no capítulo anterior, ela se mistura e sincretiza. Valéry escreve, resumindo Frazer:


Da Melanésia a Madagáscar, da Nigéria à Colômbia, cada povo teme, evoca, alimenta e utiliza os seus mortos; mantém relações comerciais com eles; atribui-lhes função positiva na vida, suporta-os como parasitas, acolhe-os como hóspedes mais ou menos desejáveis, atribui-lhes necessidades, intenções e poderes (1).


Esses mortos não são princípios desencarnados e portanto, os termos «almas» e «espíritos», embora ainda usuais, não correspondem a esse conceito primitivo. Contudo, a despeito dos anacronismos de tradução que possam haver cometido, os fundadores da etnologia apreenderam perfeitamente a natureza corpórea dos mortos. Se são frequentemente invisíveis, são-no à maneira do homem invisível de Wells, que tem corpo. São espectros dotados de forma, fantasmas, como o havia já comentado Tylor, à imagem exacta dos seres vivos. São verdadeiros duplos, como, com grande perspicácia, o havia revelado Spencer.

É essa mesma realidade universal do «duplo» que é traduzida pelo Eidolon grego, tão mencionado por Homero, pelo Ka egípcio, pelo Genius romano, pelo Rephaim hebraico, pelo Frevoli ou Fravashi persa, pelos fantasmas e espectros do nosso folclore, pelo «corpo astral» dos espíritas, e até por vezes pela «alma», segundo certos padres Igreja. O duplo é âmago de toda a representação arcaica que diz respeito aos mortos.

Mas esse duplo não é tanto a reprodução, a cópia conforme post mortem do indivíduo falecido: acompanha o vivo durante toda a sua existência, duplica-o, e este último sente-o, conhece-o, ouve-o e vê-o, por meio de uma experiência quotidiana e quotinocturna, nos seus sonhos, na sua sombra, no seu reflexo, no seu eco, no seu hálito, no seu pénis e até nos seus gases intestinais."




(1) Valéry, no prefácio de La crainte des morts, de Frazer.



Edgar Morin, O Homem e a Morte, Lisboa, Trad. J.G. Boto e A. S. Rodrigues, Europa América, p.125.

Transferido de post de 31/07/08




Atlântida 3
Pintura de Luís de Barreiros Tavares
Colecção: Luísa Pinto Ramos


" Doravante, a aceleração serve menos para nos deslocarmos facilmente (intervalo) do que para vermos, para entrevermos com maior ou menor nitidez (interface), já que a «alta definição do real» depende exclusivamente da maior ou menor celeridade de transmissão das aparências, e não já apenas da transparência da atmosfera ou dos diversos materiais.

Para compreendermos hoje devidamente a importância do «analisador» que a velocidade representa (em particular, a velocidade audiovisual), há que voltar uma vez mais à sua definição filosófica: «A velocidade não é um fenómeno, é a relação entre os fenómenos», ou por outras palavras a própria relatividade, a transparência da realidade das aparências, mas uma «transparência espácio-temporal» que sucede aqui à transparência espacial da geometria linear das lentes ópticas. Daí o termo de trans-aparência para designar as aparências electronicamente transmitidas, qualquer que seja o intervalo de espaço que as separa do observador; esse observador doravante escravizado, tornado inseparável do objecto observado graças à própria imediaticidade da interface, desse bem nomeado «terminal» que coroa a extensão e a duração de um mundo reduzido à comutação homem-máquina, onde a «profundidade espacial» da geometria perspectivistica cede repentinamente o lugar à profundidade temporal de uma perspectiva em tempo real que substitui aperspectiva renascentista do espaço real."




Virilio, P., A Inércia Polar, trad. Ana Luísa Faria, Lisboa, Dom Quixote, 1993, p.87.

transferido de outro post em 01/08/2008

"Expliquei na minha conferência que o ideal da ciência é obter aquilo a que chamei «síntese computacional dos fenómenos», ou seja, reproduzir, a partir de equações ou de programas de computadores, uma espécie de duplo da realidade empírica. Por exemplo, o ideal da mecânica clássica é utilizar a equação de Newton, resolvê-la através de um grande computador, e obter uma imagem perfeitamente exacta dos anéis de Saturno."

Jean Petitot em entrevista (conduzida por Nuno Nabais), Expresso, 9 de Novembro de 1996.

Trata-se de uma admirável explicação - concisa, exacta, de uma clareza sem mácula - daquilo que a ciência quer: criar uma realidade virtual. Em rigor, é isso que nem a poesia nem a filosofia nem a arte querem ou podem querer.

Desde logo, uma advertência: é de evitar ver nesta apreciação qualquer traço litigioso entre ciência e filosofia; decisivo é, ao invés, sublinhar sem qualquer equívoco o que separa a ciência, assim estabelecida, da filosofia e da poesia. Nesse sentido, é necessário pôr a descoberto a diferença específica entre o mundo tal como a ciência o vê: uma ocasião para a geração, em imagem dupla, de outro mundo em que o primeiro fique integrado, e aquilo que se liberta do mundo pelo esforço de que seja feita uma apresentação poética, filosófica ou artística. Por outras palavras, o grande sonho (bem acordado) da ciência é produzir um mundo que replique, reproduza, o mundo que há, através de modelos e operadores complexos - neste caso, electrónicos -, o que tem como resultado a transformação do mundo que há no mundo a que temos acesso, por meio desses mesmos modelos e operadores. Este resultado final é em tudo contrário ao anseio de que a representação se solte, se descole da própria coisa como outros tantos aspectos da sua fisionomia. E aqui poderíamos evocar, a título de exemplo e para lá das suas especificações irredutíveis, Platão e Goethe, Espinosa, Benjamin ou Wittgenstein; como também é contrário à visão de que a literatura autêntica seja aquela que acabe por abraçar a realidade, recorrendo àquilo a que Hermann Broch chama os «vocábulos de realidade», ou, como igualmente lhes chama Mandelstam, «ornamentos», cuja energia expressiva alimenta a recitação da natureza, i.e, a poesia, isso que é um efeito de uma impotência da alma em absorver a realidade mesma, como de modo excelente nos esclarece Jorge de Sena, ou ainda, por escavação no breu que ameaça sempre devorar-nos, fazer cintilar aquilo que espera também sempre poder cintilar, como diz Giorgio Colli que escavaram Stendhal e Proust, e, uma vez mais ainda, acrescentar um aspecto à nostalgia indestrutível de um mundo melhor, como é o caso de Gerhard rRchter, no momento em que se interroga sobre o valor de uma estúpida demonstração dos pincéis.

O cientista russo Vernadsky retomou uma teoria segundo a qual existiria em volta da terra uma «noosfera»: uma espécie de envelope em que estaria arquivada a memória das culturas. Ela conteria todas as ideias, imagens e concepções desenvolvidas pela humanidade, desde o seu começo até aos nossos dias . Seria preferível entrar em contacto com essa noosfera do que com a Internet.

Veja a história da representação: os dedos traçando sinais na areia, depois com pigmentos nas paredes das cavernas, depois no papel ou noutro material, depois a fotografia, o cinema, o vídeo, as imagens numéricas, a realidade virtual - todos sabemos que a representação se tornou indiscernível do mundo real. Cada vez vivemos mais num mundo construído como o dos sonhos: o que nos faz apreciar melhor os prazeres sensuais do mundo natural, a sua beleza sublime.

Ilya Kabakov e Tm Shannon, respectivamente."

in: Molder, M. F., A Imperfeição da Filosofia, Lisboa, Rel. D'água, 2003, p.128

Leitura:

1. "(...)uma ocasião para a geração, em imagem dupla, de outro mundo em que o primeiro fique integrado(...)

(...) produzir um mundo que replique, reproduza, o mundo que há, através de modelos e operadores complexos (...)

(...) o que tem como resultado a transformação do mundo que há no mundo a que temos acesso (...)



Dir-se-ia haver na ciência a tentativa de surpreender a surpresa do mundo que há de dentro e a do mundo que há de fora («o mundo que há no mundo»). Quer dizer, a ciência parece pretender uma re-produção que surpreenda aquela surpresa do mundo através de um decalque representativo («produzir um mundo que replique, reproduza» (sublinhados nossos)). Enfim, uma vontade de domínio segundo outros moldes (ou outros modelos?).



2. Há aqui uma subtil ironia. É que apesar de e porque (expressão tão utilizada por Vladimir Jankélévitch, «bien que et parce que») " cada vez vivemos mais num mundo construído como o dos sonhos: o que nos faz apreciar melhor os prazeres sensuais do mundo natural, a sua beleza sublime" não deixa de haver, no entanto, uma nuance, não «litigiosa» entre ciência e filosofia. Mas como que um apelo a um relance de dados, pois também há «a imperfeição da filosofia».

Transferido de outro post 04/08/2008

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

«Para o homem racional, manter a fixação de sua auto-imagem assegura a sua ignorância abissal. Ele ignora o facto de que o xamanismo não significa encantamentos e embromação, mas a liberdade para perceber, não só o mundo tomado sem discussão, mas tudo o mais que é humanamente possível realizar. Ele treme diante da possibilidade da liberdade. E a liberdade está ao alcance das mãos.»


Carlos Castaneda, A Roda do Tempo, citação de O Poder do Silêncio, Nova Era, Rio de Janeiro, p.294.


A nossa «auto-imagem» não deve ser uma imagem fotográfica ou uma imagem de retrato (de fachada), quer dizer de «embromação». Nem uma imagem de «encantamentos» (de adorno, de enfeite, etc.). Ela deverá ser um movimento de ressalto destes efeitos gorados. Uma extra-sensação, um sopro de extra-sensações, de extra-percepções abstractas na sua descolagem desafectada. Estas extra-sensações abstractas re-configuram outra imagem sempre reenviada num livre-trânsito (usando uma metáfora, como nos passes sociais dos transportes). Uma espécie de co-presença (presença a si) do corpo. Todavia, co-presença invisível no sentido de não ser do plano da vulgar visualização (da trivial auto-visualização).


A visualização, a surgir, só surge quando o novo olhar de um outro-novo «nada», ou de um «vazio», de um invisível que já não assusta - que já não é o vazio ou nada do niilismo ocidental ("o niilismo, o mais temível de todos os hóspedes", Heidegger, Carta Acerca do Humanismo), da «ignorância abissal» (Castaneda), mas o olhar da co-presença do corpo (corpo-olhar), do corpo não re-presentado como dado adquirido, mas de um in-visível que é o não figurado, in-visível que atravessa agora o visível. A visualização só surge, dizia, quando este novo olhar é a imagem do próprio olhar. A visualização só surge quando o corpo olha. Ou antes, quando o olhar é feito corpo. Não propriamente enquanto corpo projectado, mas à maneira do que releva do facto real de que o cosmos nos reflecte. Este é como se sabe um dos pontos de vista da teoria do corpo espelho.


Aqui o olhar é mais do que o ver. É mais do que ele; não porque o ultrapasse, mas porque já não visa o «ver sempre ainda mais» que é o risco que o ver tende sempre a correr.
E no entanto, mais fulgurante do que isto não será escutar o seu silêncio?
«Pode-se agora voltar à questão de saber porque é que Aristóteles não pensou o signo. Os Estoicos acrescentaram ao par nome/coisa um terceiro termo, o Lékton ( ou significação), com o estatuto ontológico de 'incorporal' (tal como o vazio, o lugar e o tempo). Ora, o fundador da escola da Stoa, Zenão de Cítio, era semita de origem e só aprendeu o grego na escola, era bilingue: a tradução era-lhe pois familiar como aos Gregos clássicos não. Quando se quer pensar o que não muda, o bilingue põe a questão de maneira diferente do que só fala-pensa em grego. A ousia (substância) das coisas não muda , foi Aristóteles quem no-lo ensinou; os nomes mudam consoante as línguas , Aristóteles sabe-o 'em teoria' (ver início de Da Interpretação), Zenão sabe-o 'na prática'; o lékton não muda segundo Zenão, e disso Aristóteles não diz nada, isso não lhe diz nada a ele, que só fala grego. O signo é helenístico, pressupõe a tradução, que sem ele não se pode fazer. E consuma a separação do triedro: o pensamento como lékton ou sentido, a realidade como coisa ou referente e a linguagem como nome ou palavra. Esta sendo a única que muda, está de si mesma destinada à subordinação com 'organon' (instrumento).»
Fernando Belo; Seja um Texto de Paixão, Suplemento a: Filosofia e Ciências da Linguagem, Lisboa, Colibri, secção 32; p.30.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Empédocles




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Atlântida 5
Pintura de Luís Tavares
Colecção privada


"A double tale will I tell: at one time it grew to be one only from many, at another it divided again to be many from one. There is a double coming into being of mortal things and a double passing away. One is brought about, and again destroyed, by the coming together of all things, the other grow up and is scattered as things are again divided. And these things never cease from continual shifting, at one time all coming together, through Love, into one, at another each born apart from the others through Strife. (So, in so far as they have learnt to grow into one from many,) and again, when the one is sundered, are once more many, thus far they come into come into being and they have no lasting life; but in so far as they never cease from continual interchange of places, thus far are they ever changeless in the cycle."

Fr. 17, 1-13, Simplicius Phys. 158, 1

Kirk, G.S., & Raven, J.E., The Presocratic Philosophers, University Press, Cambridge, 1975.

" Vou contar uma dupla história: de uma vez cresceu para ser um só a partir de muitos, de outra, dividiu-se de novo para ser muitos a partir de um. Há um duplo nascimento das coisas mortais e um duplo deixar de existir. Um é gerado e depois destruído, pela junção de todas as coisas, o outro cresce e é espalhado à medida que as coisas de novo se dividem. E estas coisas nunca cessam o seu mover contínuo, ora convergindo num todo, graças ao Amor, ora cada uma separada das outras pela Discórdia. (Assim, na medida em que aprenderam a fazer-se num a partir de muitos) e de novo, quando esse um está separado, são uma vez mais muitos, assim nascem e não têm vida duradoura; mas, na medida em que nunca cessam a intermutação contínua de lugares, nessa medida eles são sempre imutáveis no ciclo."

Empédocles, Fr.17, 1-13, in Simplício, Phys., 158,1
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Trad.: Kirk e Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos, trad. C.A.L. Fonseca, B.R. Barbosa, M.A.Pegado, Gulbenkian, Lisboa.

"But come, hearken to my words; for learning increaseth wisdom. As I said before when I declared the limits of my words, a double tale will I tell: at one time is grew to be one only from many, at another it divided again to be many from one, fire and water and earth and the vast height of air, dread Strife too, apart from these, everywhere equally balanced, and Love in their midst, equal in lenght and breadth. On her to thou gaze with the mind, and sit not with dazed eyes; for she is recognized as inborn in mortal limbs; by her they think kind thoughts and do the works of concord, calling her Joy by name and Aphrodite. Her does no mortal man know as she whirls around amid the others; but do thou pay heed to the undeceitful ordering of my discourse. For all these are equal, and of like age, but each has a different prerogatif and its own character, and in turn they prevail as time comes round. And besides these nothing else comes into being nor ceases to be; for if they were continually being destroyed, they would no longer be; and what could increase this whole, and whence could it come? And how could these things perish too, since nothing is empty of them? Nay, there are these things alone, and running through one another they become now this and now that and yet remain ever as they are."


Fr.17, 1. 14, Simplicius Phys. 158,13 (continuing Fr. 1. 17, 1-13)

Op.cit.


" Mas anda, atenta nas minhas palavras; pois aprender aumenta a sageza. Como disse anteriormente, quando declarei os limites das minhas palavras, vou contar uma dupla história: de uma vez, cresceu para ser um só a partir de muitos, doutra, dividiu-se outra vez para ser muitos a partir de um, o fogo e a água e a terra e a vasta altura do ar, e também a discórdia temível separada destes, em toda a parte igualmente equilibrada, e o amor no meio deles, igual em comprimento e largura. Para ele olha com o espírito e não fiques com os olhos ofuscados; pois ele é reconhecido como inato nos membros imortais; por ele são eles capazes de pensamentos bons e de praticar obras de concórdia, dando-lhe o nome de Alegria e a Afrodite. Nenhum homem mortal o conhece, quando ele rodopia no meio dos outros; mas presta atenção à ordenação do meu discurso que não engana. Pois todos estes são iguais e de idade igual, mas cada um tem uma prerrogativa diferente e o seu próprio carácter, e prevalece cada um, por sua vez, à medida que o tempo gira. E além destes, nada mais se gera nem cessa existir; porque se estivessem a ser continuamente destruídos, já não existiriam; e o que poderia aumentar este todo e de onde poderia vir? E como poderiam estas coisas perecer também, visto que nada está vazio delas? Não, há somente estas coisas, e correndo umas pelas outras, elas tornam-se umas vezes isto, outras aquilo, e permanecem, contudo, sempre como são."

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Empédocles, Fr.17, v.14, in Simplício, Phys., 158, 13 (continuação de Fr.17, 1-13)

Trad.: Op.cit.

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